Stramuntana: de Trás-os-Montes para o mundo
Stramuntana! Tudo começou a 18 de dezembro de 2018, com o casal Fernando Araújo e Lídia Brás a abrirem um pequeno espaço de restauração, para servirem petiscos, vender presuntos, enchidos, cogumelos, vinhos e outros. Rapidamente o espaço tornou-se insuficiente, levando à abertura de uma nova sala com esplanada e lareira. É lá que nos podemos deliciar com uma posta de vitela, butelo com casulas, javali, cabidela e outras iguarias.
Apesar de um início de vida “difícil”, devido à pandemia de Covid-19, o que é certo é que esses tempos foram ultrapassados e hoje o restaurante Stramuntana recebe cada vez mais comensais, oriundos dos quatro cantos do mundo. A estes juntam-se igualmente os prémios e distinções.
Localizado na Rua de Soares dos Reis, 903, em Vila Nova de Gaia, outrora uma antiga quinta, que remonta a 1937, com o nome de Vila Olivia, o espaço assume uma identidade própria ao apostar na gastronomia tradicional portuguesa, nomeadamente a transmontana. Assim, a ementa inclui posta de vitela e alheira com batata a murro e grelos, bacalhau com crosta de alheira, bochechas de vitela, butelo com casulas, caldo de casulos, cordeiro mirandês DOP, javali com castanhas, tripas à moda do Porto, papas de sarrabulho, cabrito assado, polvo, entre outros.
A confeção destes pratos não seria possível sem a sua criadora, Lídia Brás, natural de Trás-os-Montes, no nordeste transmontano. Nascida e criada em Estevais, uma pequena aldeia do concelho de Mogadouro com cerca de 40 habitantes, Lídia orgulha-se das suas origens. Tendo vivido igualmente em Miranda do Douro, mais propriamente em Sendim, a língua mirandesa sempre fez parte da sua vida. Por isso, quando pensou em abrir este espaço, fazia sentido homenagear as suas origens. Stramuntana significa em mirandês, “transmontana”. Não será por isso de estranhar que, a comunicação do restaurante seja também feita em mirandês, uma língua secular e oficializada em Assembleia da República em 1999.
Embora a sua formação académica seja em Artes, a paixão pela cozinha surgiu desde tenra idade. Lídia, era a menina do alguidar do sangue na matança, que lavava as tripas, que ajudava a fazer o folar da Páscoa, que amassava pão e assava o cabrito. Por isso, foi com naturalidade que abriu o seu primeiro restaurante há 15 anos, juntamente com o marido Fernando Araújo. Em 2018 decidiram abrir um novo espaço de petiscos que rapidamente se converteu no restaurante Stramuntana.
Lídia Brás, considera-se uma chefe autodidata. Aprendeu a cozinhar com a mãe e com a avó. Mais tarde, foi a sogra que a ensinou a fazer papas de sarrabulho, as tripas e o “pica no chão”. Para além disso, aprende fazendo formações, com os demais colegas de profissão, em livros e empiricamente pondo em prática os ensinamentos que lhe são passados. Recentemente, começou a procurar receituário antigo de Trás-os-Montes, sobretudo coisas que já não se fazem e que os mais idosos (pessoas com 70, 80 ou mais anos) são os únicos que sabem fazer. “Se nada for feito, se não tivermos receitas escritas, a curto ou médio prazo, será uma perda imensa, colossal. Determinadas receitas vão desaparecer, acabando por morrer”.
Exemplo disso mesmo são os cuscos transmontanos, um produto que utiliza no Stramuntana feito à base de trigo barbela que em vez de ser utilizado para fazer pão, são enrolados à mão, cozidos na cusqueira, num pote de ferro ao lume. Mais tarde, são estendidos e secos. Durante este processo de secagem, molha-se uma vassourinha em água e sal e vai-se salpicando os cuscos.
“Atualmente estes cuscos são feitos apenas por três pessoas na zona de Vinhais, as únicas pessoas que os sabem fazer. É uma herança que se perde”, indica-nos Lídia Brás. O seu objetivo passa assim por investigar, falar e deixar escrito receitas antigas para que estas perdurem no tempo. E é com orgulho que vê outros chefes, de renome internacional, a recuperar determinados produtos portugueses. Com os cuscos, Lídia confeciona, carabineiros, bacalhau, pato, cogumelos ou até mesmo sobremesas. “Podemos pegar na tradição e colocar umas pitadas de inovação, adaptando determinadas receitas ao Litoral, sem esquecer as nossas origens”, frisa a cozinheira.
“Todos somos importantes, desde a tasquinha à estrela Michelin”
Quem procura o restaurante Stramuntana, encontra um lugar onde é servida comida tradicional portuguesa oriunda de Trás-os-Montes e alguns pratos do Minho (de onde é natural a sua sogra).
No Stramuntana a herança transmontana predomina, até na decoração. Nas salas há caretos de Podence, gaitas-de-foles, capas de Honra Mirandesa, cabaças e referências ao “reino maravilhoso” de Miguel Torga e muito mais.
O menu do Stramuntana está sempre a mudar, mas há pratos fixos na carta, como a posta mirandesa ou os pratos de grelha, onde normalmente encontramos o Fernando. Tudo é preparado com tempo e na hora, sublinha Lídia.
Não obstante, o tempo (a chefe prefere falar no tempo, em vez de sazonalidade) e os produtos da época são um dos elementos definidores da cozinha do restaurante. No inverno têm pratos com marmelos, cabaças, abóboras, diospiro, maçã e outros. Fevereiro é o mês do Entrudo, e por isso, também do butelo e das casulas, servido num cozido à portuguesa. Têm ainda pratos de inovação, como o pudim de grelos ou, como janeiro é mês de receber chouriço bísaro, pudim com esse ingrediente.
Lídia, concorda quando se diz ‘que Portugal está na moda’. “Existem cada vez mais cozinheiros e chefes, em Portugal, que valorizam o produto nacional, o que é ótimo, porque temos produtos únicos e de excelência”. E exemplifica, “quando começa a época dos cogumelos, por que razão temos de ir comprar cogumelos a França, quando os nossos são de exímia qualidade e com preço acessível?!”
Lídia assume que a gastronomia portuguesa é “espetacular, deliciosa e surpreendente” e que quem vem de fora pensa o mesmo. Segundo a chefe, “existe cada vez mais entreajuda e uma maior abertura na partilha de conhecimentos entre chefes e cozinheiros”. Tudo isto, “é importante para todos ganharmos. Todos somos importantes, desde da tasquinha à estrela Michelin. Temos público e turismo para todos. Em Portugal temos todos os ingredientes para criar boas memórias em quem nos visita”. Entre estes, para além dos portugueses, europeus, americanos, chineses e japoneses são visitas recorrentes no Stramuntana.
Garrafeira com mais de 2000 referências é “um bom complemento à comida”
Prova do reconhecimento que o Stramuntana tem conquistado, o restaurante tem recebido vários prémios e distinções, nomeadamente durante a pandemia de Covid-19, quando foram distinguidos pelo seu caldo de casulas e pelo butelo de casulas. Para Lídia Brás e Fernando Araújo tal significa o reconhecimento da sua comida, do seu restaurante, mas sobretudo, de Trás-os-Montes.
Para além da boa comida, neste espaço é ainda possível encontrar uma vasta garrafeira, com cerca de 220 referências de champagne e cerca de 1800 referências de vinho, 80% dos quais nacionais. A garrafeira foi uma aposta de Fernando, um amante de vinho, que admite que os “vinhos são um bom complemento à comida” e que “quem nos visita reconhece e procura a nossa garrafeira”.
Este foi um dos motivos para introduzir no restaurante Stramuntana um novo desafio: a ‘Mesa da Cozinheira’, um evento que junta na sala privada mensalmente cerca de 12 pessoas, para provar um menu específico, confecionado por Lídia Brás, acompanhado dos bons vinhos selecionados por Fernando Araújo. O primeiro jantar foi uma vertical, com 9 vinhos, de 9 anos seguidos de Tondonia branco, vinho de origem espanhola. No futuro, esperam ter uma edição dedicada ao Barca Velha, com vinhos dos anos de 83, 85, 99, 2000 e 2004. O objetivo é fazer, uma vez por mês, verticais de “coisas” únicas e exclusivas.