Colheita Tardia: vinhos que desafiam o tempo e as tendências
Produzidos a partir de uvas colhidas após o ponto de maturação ideal, estes vinhos doces destacam-se pela sua doçura natural e complexidade aromática, fruto de técnicas exigentes e condições únicas, como a ação da Botrytis cinerea, a chamada “podridão nobre”. Originários da Alemanha, os Colheita Tardia conquistaram o mundo e, em Portugal, desafiam os produtores a criar verdadeiras joias para harmonizar com foie gras, sobremesas e queijos.
A história dos vinhos de Colheita Tardia remonta ao século XVIII, na Alemanha. Conta-se que, em 1775, o mensageiro que deveria trazer a autorização do príncipe-bispo para a colheita atrasou-se, e quando os monges do mosteiro Kloster Johannisberg, no Rheingau, puderam finalmente vindimar, as uvas Riesling estavam desidratadas e cobertas pelo fungo Botrytis cinerea. Sem alternativa, vinificaram as uvas para evitar perdas, obtendo um vinho com uma doçura e complexidade nunca antes vistas. Assim, acidentalmente, nasceu o conceito de Colheita Tardia. A origem histórica foi, assim, um acidente transformador, fazendo destes vinhos um dos exemplos mais fascinantes da enologia mundial.
Os Colheita Tardia ou Late Harvest são, então, produzidos a partir de uvas colhidas várias semanas após o ponto ideal de maturação, fazendo com que as uvas passem por um processo natural de desidratação, concentrando açúcares e alterando os seus aromas. O resultado é um vinho doce, de acidez marcante e estrutura complexa, capaz de proporcionar experiências sensoriais e gastronómicas memoráveis.

O papel do fungo Botrytis cinérea
Existem várias técnicas para desidratar bagos de uva e produzir vinhos doces. No “passerillage”, as uvas secam na vinha após a ligação vascular ser interrompida, podendo-se torcer os caules para acelerar o processo. Outra opção é secá-las ao sol, preservando ácidos, mas com risco de degradação de aromas.
No caso do Eiswein ou Icewine, as uvas são deixadas na vinha até congelarem, resultando em mostos muito concentrados.
A técnica mais sofisticada utiliza a “Podridão Nobre”, conseguida através do fungo Botrytis cinérea. Em condições específicas de humidade matinal e dias secos, este fungo perfura a película das uvas, provocando a evaporação da água e a concentração de açúcares e compostos aromáticos. Este fenómeno natural, aliado à acidez elevada de castas como Riesling, Sémillon ou Sauvignon Blanc, resulta em vinhos equilibrados, de textura cremosa e com aromas complexos de mel, pêssego, especiarias e flores.
Embora seja possível induzir o Botrytis em condições artificiais, o impacto dos vinhos produzidos em terroirs onde a podridão nobre ocorre naturalmente, como Sauternes (França), Tokaj (Hungria) ou em alguns terroirs de Portugal, é inigualável.
O panorama em Portugal: desafios e potencial
Em Portugal a tradição na produção de vinhos doces está mais associada aos vinhos fortificados, como o Porto, o Madeira e o Moscatel. A produção de Colheita Tardia consolidou-se mais a partir deste milénio, sendo possível encontrar bons exemplos “made in Portugal”, em diversas regiões, como Douro, Tejo, Dão e Alentejo, onde existe potencial, utilizando castas como Sémillon (ou Boal, no Douro), Arinto, Malvasia Fina, Encruzado e Fernão Pires, entre outras como Alvarinho, Avesso ou Espadeiro na região dos Vinhos Verdes ou, ainda, Furmint, viognier ou Petit Manseng, por exemplo. Seguramente que já ouviu falar num dos exemplos mais emblemáticos deste tipo de vinhos em Portugal – o Grandjó, da Real Companhia Velha -, produzido na região do Douro com Sémillon.
Para os enólogos a produção de Colheita Tardia é altamente desafiante e para o produtor também, já que os custos são mais elevados, devido a vários fatores. Devido à desidratação dos bagos, o rendimento por planta é baixo, agravando o facto de todos os cachos teres de ser avaliados e escolhidos manualmente, muitas vezes bago a bago. Além disso, o processo de vinificação requer equipamentos especializados e um controlo rigoroso para evitar fermentações incompletas ou desequilibradas. No final tudo vale a pena, pois são vinhos incríveis.

Harmonização e experiências gastronómicas
Os Colheita Tardia são vinhos versáteis e deslumbrantes quando bem harmonizados, seja na companhia de foie gras, como com queijo azul ou queijo de cabra e compota de alperce ou laranja. Sobremesas à base de natas e frutas, como tartes de limão ou pêssego, são igualmente boas parceiras. No entanto, os melhores exemplares não precisam de acompanhamento – a sua doçura equilibrada e a acidez vibrante convidam à meditação e ao puro prazer sensorial, a temperatura de serviço é muito importante, entre os 10 e os 12ºC, optando por um copo menos aberto em cima.
Doces, mas nunca enjoativos, os Colheita Tardia são um testemunho do que a paciência e o respeito pela natureza podem alcançar. Em Portugal, embora os desafios sejam muitos, a produção deste estilo de vinho representa uma celebração ao terroir e à criatividade dos enólogos, provando que há espaço para a doçura num país de tradição fortificada. Conheça, na edição 97 da revista Paixão Pelo Vinho, alguns exemplares que a equipa da revista Paixão Pelo Vinho provou às cegas.