Manuel Vieira cresceu entre vinhas e adegas, um ambiente que sempre o cativou. Depois da Sogrape, o enólogo que mais contribuiu para a introdução da vinificação de brancos, em entrevista à Paixão Pelo Vinho, conta-nos quais os desafios como consultor. E explica-nos que o mais bonito num enólogo é ser um criador de lotes, de pinturas, que não são mais do que o vinho.
Manuel Vieira é um dos mais notáveis enólogos da sua geração. Filho de um respeitado professor de enologia do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, que dava assistência a vários produtores, cresceu num ambiente de vinhas e adegas de que sempre gostou. Forma-se em engenharia agronómica, no mesmo instituto e mais tarde frequenta o Instituto de Enologia de Bordéus onde faz uma especialização.
Em 1985 entra para a Casa Ferreirinha, tendo trabalhado com o mítico Fernando Nicolau de Almeida no, não menos mítico vinho, Barca Velha. A aquisição da Casa Ferreirinha pela Sogrape em 1987 leva-o para o Dão, onde se torna diretor de enologia da Quinta de Carvalhais. Aí começa a descobrir a região à qual ficará para sempre ligado e desenvolve um notável trabalho ao nível do estudo das castas tradicionais da região e respetivos modos de vinificação. Há quem diga que existe um Dão antes e depois de Manuel Vieira. A sua obra foi fundamental para a revitalização dos vinhos da região, nomeadamente dos brancos e é, muito justamente, considerado um dos proeminentes responsáveis pela introdução da vinificação de brancos ao “estilo Borgonha” no Dão, mais propriamente na casta Encruzado.
Tendo-se reformado da Sogrape em 2011, continua a trabalhar dando assistência a projetos no Dão e no Douro.
Constituindo os vinhos brancos de topo, o tema de capa desta Paixão Pelo Vinho, falar com Manuel Vieira era, pois, imperativo.
Está oficialmente reformado da Sogrape desde 2011. Mas isso não quer dizer, de todo, que esteja parado. Quais são os grandes desafios que tem encontrado como consultor?
Admito que estava com alguma inquietação. Comecei a minha vida profissional em 1985, na Ferreirinha, e o meu primeiro trabalho foi ir para o Vale de Meão ajudar a fazer o Barca Velha 85, com o Fernando Nicolau de Almeida. A fasquia era elevada.
Mostrou-nos uma fotografia de um jantar, onde estão, para além do Manuel Vieira, precisamente o Fernando Nicolau de Almeida, José Maria Soares Franco, Luís Sottomayor e João Nicolau de Almeida. O setor do vinho abraça toda uma história, uma tradição, e propensão para uma descendência e hereditariedade…
Claro. Se o vinho não tiver tradição e história simplesmente não tem interesse.
O vinho branco necessita de muita técnica para ser bem feito: basta dizer que precisa de frio. E o frio é uma aquisição recente.
Mas voltemos à consultoria. Como tem sido a jornada?
Já trabalhei em vários projetos e casas e hoje trabalho, essencialmente, com os Caminhos Cruzados, no Dão; no Douro, na Quinta de Cotas do Pedro Carmo; e no Barão de Vilar, do Fernando Van Zeller.
Depois de vermos alguns exemplos de produção de vinhos brancos de uvas tintas, do reaparecimento dos brancos de curtimenta, ou dos vinhos brancos de talha, considera que ainda podemos ser surpreendidos com outros conceitos de vinhos brancos? Porque só “recentemente” é que o mundo despertou para o vinho branco.
Sim, para o mundo francês é que sempre teve imensa importância. O vinho branco necessita de muita técnica para ser bem feito: basta dizer que precisa de frio. E o frio é uma aquisição recente. Como comecei há muito tempo, acompanhei a evolução do vinho, da viticultura e dos novos conceitos de vinho. Quando cheguei ao Dão, em 1987, falava-se muito da casta Encruzado, mas estava pouco plantada e não havia vinhos específicos. Só a partir de 1990 é que comecei a estudar e a trabalhar as castas brancas.
Por tudo isso, é mais desafiante fazer um vinho branco?
Sou um brancófono, gosto imenso de vinho branco. Até acho mesmo que o vinho branco é mais diferenciado do que o tinto. Já reparou na diferença entre um Sauvignon e um Chardonnay, um Alvarinho, um Moscatel, um Encruzado? São radicalmente diferentes.
O vinho branco envelhece bem?
Ao contrário do que as pessoas dizem, sim, envelhece. Nem todo, é verdade. Mas há muito vinho verde que envelhece muito bem. A evolução do vinho branco é muito entusiasmante.
O vinho branco era muito mal feito e as pessoas tinham razão em não gostar. Usavam-se doses de sulfuroso demasiado altas… ainda hoje há pessoas que dizem que não conseguem beber vinho branco porque lhes faz mal.
Mas é verdade que as casas, os produtores, não investiam em vinho branco…
Pois não. Vou-lhe fazer um resumo: o vinho branco era muito mal feito e as pessoas tinham razão em não gostar. Usavam-se doses de sulfuroso demasiado altas… ainda hoje há pessoas que dizem que não conseguem beber vinho branco porque lhes faz mal. Por causa disso, começou-se a desinvestir na uva branca. Lembro-me que no Dão, quando se começou a plantar as vinhas, praticamente não se plantavam brancas porque simplesmente não vendiam.
Mas hoje essa realidade é bem diferente.
Muito diferente. Hoje é difícil encontrar um vinho branco mal feito e logo o consumidor está a reagir a isso.
Qual o conceito de vinho branco que mais o fascina?
Vinho branco com estágio. Comecei a fazer isso na Quinta dos Carvalhais, comecei a deixar vinhos a estagiar em barricas usadas. Há uma história engraçada: comecei a guardar e a certa altura tinha mais de 100 barricas no armazém cheias de vinho branco. E o senhor Fernando Guedes, que visitava a adega muitas vezes, perguntou o que era aquilo. Lá expliquei que era vinho branco, para seu espanto. Aceitou a minha ideia e posteriormente esse vinho deu origem ao branco especial da Quinta dos Carvalhais, um vinho que estagiava três anos em barrica. Lembro-me que o primeiro foi em 2004 e foi um sarilho. Porque quando se vendia por exemplo ao Continente as pessoas telefonavam a dizer que nos tínhamos enganado…
É considerado um dos proeminentes responsáveis pela introdução da vinificação, de brancos, ao “estilo Borgonha” no Dão, mais propriamente na casta Encruzado. A fermentação e/ou o estágio de uvas brancas em vasilhas de carvalho é, na sua ótica, uma solução que já está a ser amplamente aproveitada para se obterem vinhos de qualidade superior ou existem ainda mais variedades que podem ser engrandecidas com o uso destas técnicas?
A coisa que mais me irrita é ouvir colegas dizerem que não tiveram de intervir. Não! O vinho é um produto criado pelo homem e que tem de ser feito pelo homem. Quanto menos intervenção enológica houver, mais intervenção do enólogo tem de haver.
Quando comecei no Dão, não comecei apenas com o Encruzado, comecei com mais duas ou três castas, desde a Verdelho, ao Arinto do Dão, Malvasia… E a verdade é que a que sobreviveu à madeira foi o Encruzado. Há castas que não têm interesse nenhum em meter em barrica. O Encruzado é uma casta que não é aromaticamente muito exuberante, nem sequer muito identificável. Aliás, quando nasce, o Encruzado é o patinho feio. Os aromas estão ali entre os espargos, o vegetal, maça verde… não é um Sauvignon ou mesmo um Alvarinho. Ou seja, o Encruzado ganha muito em adquirir aromas terciários com o estágio em barrica. Ou seja, é preciso ter cuidado com a casta que se utiliza.
Qual a importância da escolha da madeira, tempo de estágio, número de usos e dimensão das barricas para a obtenção de vinhos de alta qualidade?
Isso é algo que está a dar muita polémica porque há quem diga que madeira a mais é horrível. Mas temos que pensar que somos enólogos e que há soluções. Madeira a mais é mau, sim, tudo que crie desequilíbrio é mau, mas daí a dizer que não se deve utilizar barricas novas…. Podemos usá-las, mas depois temos de ser enólogos e equilibrar o vinho com outros vinhos que não estejam nas barricas novas. Não há conselhos mágicos. Cada um faz como quiser.
Os vinhos brancos precisam de nascer em vinhas com condições distintas das que se pretendem para fazer crescer uvas tintas. Que característica considera mais importante uma vinha ter para se colherem as uvas brancas com as quais se farão grandes brancos?
O vinho começa nas vinhas que, para branco, têm de estar em terroirs que sejam apropriados para isso. Mas é verdade que hoje em dia faz-se bom vinho branco em praticamente todas as regiões do país, apesar de haver umas mais apropriadas. Acho que durante a maturação da uva, não deve haver temperaturas demasiado extremas. Tem de haver uma maturação lenta e homogénea, sem picos. O Dão tem essas características.
O que distingue um grande branco de um vinho branco bem feito?
É a complexidade, o equilíbrio e a harmonia que, aliás, é a pedra de toque. Como enólogo, o meu objetivo é alcançar essa tal homogeneidade, a elegância, a harmonia e complexidade, que vai depender da matéria-prima. Mas também podemos criar alguma complexidade. Quando estou a estagiar um vinho branco em barricas, estou a incutir complexidade. Os aromas terciários que surgem daí, para além do oxigénio, faz a diferença. O poder do oxigénio é muito grande. Até posso ter vinhos com perfis oxidativos complexos, como o Vinho do Porto.
Há algum vinho branco que jamais lhe sairá da memória?
Há. Talvez por ter sido o vinho que mais me tivesse chocado, no bom sentido. Foi o primeiro vinho em que acabei a garrafa e fiquei mesmo com pena de não ter mais. Ainda hoje me lembro, foi há muito tempo, terá sido por volta de 1982, estava a estagiar no Instituto do Vinho do Porto e estávamos a provar um Alvarinho, Palácio da Brejoeira, não sei de que ano. Foi uma coisa extraordinária, uma experiência fantástica, nunca mais me esqueci. Não sei se foi o melhor, mas para mim, foi a melhor sensação de sempre.
O que lhe falta fazer?
Na Sogrape, os enólogos são muito bem tratados, dão-nos a oportunidade de desenvolver a nossa criatividade. Quis fazer colheita tardia, fiz. Quis fazer espumante, fiz. Tudo o que queria fazer, mais ou menos fiz. Já lancei o meu primeiro vinho com o Carloto Magalhães e agora os meus objetivos são continuar com o projeto de pura enologia, em contramão com a diabolização do enólogo. A coisa que mais me irrita é ouvir colegas dizerem que não tiveram de intervir. Não! O vinho é um produto criado pelo homem e que tem de ser feito pelo homem. Quanto menos intervenção enológica houver, mais intervenção do enólogo tem de haver. O que acho ainda mais bonito num enólogo é que ele é um criador de lotes, de pinturas que são o vinho.